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Quando eu era criança tínhamos um passarinho, um coleirinha chamado Fred. Num fim de semana, fomos à praia e deixamos o Fred na casa dos meus avós.
A minha tia Lola que morava com eles, tinha uma gata chamada Mimi. Hoje sei que essa combinação, não poderia nunca dar certo.
No domingo a noite, o meu pai foi buscar o Fred. Quando chegou a casa, corri para ver meu passarinho mas a gaiola estava vazia, com algumas penas espalhadas pelo comedouro.
- Pai, onde está o Fred?
- Algum gato entrou na casa da avó e comeu o nosso passarinho…
Começamos a chorar e o meu pai revelou-se um grande líder. Naquele momento, embora eu não tivesse a menor ideia do que seria um líder.
- Chorar? Vamos lá caçar esse gato. Ajuda-me a pegar tudo que precisamos e amanhã vamos fazer uma grande caçada. Vamos procurar uma lanterna, pedras, e uma corda para amarrar o gato... Pois se ficarmos a chorar assim, não conseguiremos apanhar esse gato que comeu o nosso passarinho.
Naquele momento, a tristeza pela perda foi substituída pelos preparativos, para a grande caçada que vingaria meu Fred. Nem dormi de tanta excitação.
Na manhã seguinte vi o meu pai a preparar-se e perguntei se já iríamos caçar o gato. Ele disse que precisaria trabalhar e comprar mais algumas coisas para a nossa caçada, e que a hora do almoço, nós sairíamos para a nossa expedição atrás do gato.
A nossa caçada nunca aconteceu. Alguns anos mais tarde, soube que a Mimi tinha comido o Fred. Mas isso já não fazia mais diferença.
Alguns anos depois (o tempo sempre nos ensina) compreendi o que meu pai fizera. Ele arrancou o desespero do meu coração e colocou uma meta. Inundou a minha imaginação com tantas estratégias, ferramentas e armadilhas... que eu esqueci a dor da perda.
Ele nunca disse que a Mimi tinha comido o Fred, porque sabia que eu iria conviver com ela durante muitos anos. Não queria que o rancor temperasse a nossa relação; não é bom contar uma verdade que só vai magoar.
De alguma forma fazemos isso, durante toda a nossa vida. Sempre que o desespero, o medo, a dor e o vazio começam a invadir nossa Alma, inventamos projetos, metas, compromissos, regras... para distrair o nosso coração e aplacar o profundo medo de existir.
Agarramo-nos à imaginação e lá encontramos cores para enfeitar nosso cenário.
Às vezes a realidade apaga essas cores, mas sempre teremos tintas de reserva nesse farto universo da imaginação.
E, no momento em que sentimos o beijo quente da Morte, chamamos isso de viagem e imaginamos um lugar lindo, branco, cheio de paz e pessoas queridas a nossa espera.
Os meus pais viam esse lugar durante todo o processo da doença; enquanto eu corria atrás de remédios, médicos, pesquisas, orações, chás... para descobrir uma cura; ou só estava a preparar-me para caçar o gato que comeu meu passarinho…
Continuo a preparar-me para a grande caçada, pois alguns dizem que a vida é batalha e precisamos criar estratégias para realizar o bom combate. Outros acreditam que vida é sofrimento, então fazemos um trato com Deus e buscamos perdão e reconciliação com nossa fonte divina. Outros ainda acham que Vida é Sacro Ofício e precisamos nos lapidar todos os dias, para merecermos o privilégio de existir...
Mas eu sei que a Vida é Escola e Jardim. Existimos para aprender como realizar e desfrutar desse milagre, neste planeta lindo ao lado de gatos, passarinhos, jovens ousados e afoitos, velhos sábios e sempre prontos para inventar novas ferramentas e projetos que confiram significado e cor a essa ventura de existir."
Sobre a autora: Míriam Morata, arquiteta e escritora, autora de Alzheimer diário do esquecimento, Alzheimer recolhendo os pedaços e Alzheimer Assombro e Cura do Cuidador