Introduza o seu e-mail
“Laços familiares, sociais e culturais são importantes na prevenção e tratamento”
Entrevista a Pedro Braga, diretor de Serviço de Cardiologia do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho
As doenças do aparelho circulatório são a principal causa de morte em Portugal. Os dados mais recentes do INE, relativos a 2017, revelam que 29% dos óbitos registados no nosso país tiveram como causa, naquele ano, problemas desse foro. O cenário, porém, já foi muito pior e a evolução desde os anos 90 é notória: naquela década as doenças cardiovasculares causavam 44% mortes no nosso país. Pedro Braga, diretor de Serviço de Cardiologia do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, um dos hospitais de referência em Portugal nesta especialidade, salienta, em entrevista, o bom trabalho feito, destacando a “franca melhoria” no tratamento dos doentes, com realce para os afetados por enfarte agudo do miocárdio, muito por causa da implementação da Via Verde Coronária.
O médico cardiologista avisa, porém, haver “muito por onde melhorar ainda em Portugal”, sobretudo nos fatores que podem ser controlados para se evitar problemas cardiovasculares. Se os hábitos saudáveis em termos de alimentação e estilo de vida já não são novidade – embora nunca seja de mais referir a sua óbvia preponderância –, há outros fatores vitais na prevenção e superação de problemas de saúde. “Os laços familiares, sociais e culturais também são importantes na prevenção e no tratamento de problemas de saúde, entre os quais os cardiovasculares”, avisa Pedro Braga.
As doenças do aparelho circulatório ou cardiovasculares continuam a ser a principal causa de morte em Portugal, mas a evolução desde os anos 90 é notória (passou de 44% para 29%). O que permitiu a evolução?
O que aconteceu, sobretudo, foi a diminuição da morte por doença cardiovascular do foro cardíaco. Continuamos a ter muitos pacientes de doença cardiovascular, sobretudo acidente vascular cerebral (AVC), mas houve uma franca melhoria no tratamento dos doentes, com destaque para o tratamento do enfarte agudo do miocárdio, que era uma grande causa de mortalidade. Neste momento, temos taxas de mortalidade muito baixas. Isso foi motivado por um novo tipo de abordagem, nomeadamente a implementação da Via Verde Coronária, que permite tratar o doente com enfarte de forma precoce, abrindo um artéria através de um cateterismo cardíaco e de uma angioplastia. Isso, a par da evolução farmacológica, foi dos principais fatores para termos doentes que, apesar de terem uma doença que pode ser fatal, conseguem prolongar a esperança de vida.
Como estão as coisas do lado da prevenção?
Há muito por onde melhorar ainda em Portugal. Há alguns fatores que, de alguma forma, agravam o risco, como sejam aqueles que não conseguimos alterar, como a idade, o sexo ou a genética. Mas há coisas que, sim, conseguimos alterar. De facto, há uma prevalência muito grande de obesidade e, relacionado com isso, temos uma elevada incidência de diabetes e hipertensão. Portanto, se, por um lado, melhorámos muito o tratamento, quer na fase aguda, quer na fase seguinte (com fármacos), por outro lado, aumentámos os riscos.
O que justifica isso?
Um dos principais fatores são os hábitos alimentares. Estes estão a mudar e a ocidentalização levou a um consumo exagerados de alimentos que há algumas décadas não era habitual ingerir em Portugal, como a fast food, que aumenta a prevalência de obesidade. Além disso, há o elevado sedentarismo. Estes comportamentos são os tais fatores de risco de doença cardiovascular que nós próprios podemos controlar.
É aí que entra a prevenção?
Temos de tentar educar a população para a saúde. Independentemente da idade, estamos sempre a tempo de melhorar a nossa qualidade de vida. Ainda temos em Portugal uma elevada taxa de consumo tabágico e é um dos hábitos que devemos abandonar se quisermos aumentar a longevidade. Está provado que os fumadores que abandonam o vício terão uma melhoria na qualidade e na quantidade de vida. Além do tabagismo, há o tema da alimentação de que já falei. No presente, temos de ter a noção que os hábitos alimentares estão ligados a uma série de doenças e à obesidade. Uma má alimentação, com muita fast food, com muitas gorduras saturadas, excesso de sal, com consumo de álcool sem moderação, potencia problemas como a hipertensão, a diabetes, os AVC e também problemas coronários, como os enfartes.
Já temos aqui duas melhorias de hábitos. E a terceira, é o exercício físico?
Sem dúvida. E estamos sempre a tempo de começar. Independentemente da idade e mesmo de termos já tido algum tipo de evento de saúde, é sempre bom fazer algum tipo de exercício. O aconselhável é fazer mais de 30 minutos diários (quanto mais próximo da uma hora, melhor), sobretudo exercício aeróbico, pelo menos cinco dias por semana. As caminhadas são um bom exemplo. Há pessoas que não gostam de fazer exercício em locais fechados ou de ir ao ginásio. Tudo bem, não tem de ser assim. Andar a pé, a um ritmo rápido, é suficiente. Para além de ter cuidado com a saúde – sem tabaco, dieta equilibrada e exercício regular –, importa a realização de exames regulares, sobretudo a partir dos 35 anos nos homens e depois da menopausa nas mulheres.
O lado emocional do coração, isto é do amor, da família e dos amigos, também importa ser cuidado, quer no processo preventivo, quer no “curativo”?
Eu diria mesmo, que é determinante. Li há pouco tempo uma notícia que citava um estudo do Instituto de Métricas de Saúde e Avaliação da Universidade de Washington que indica que, em 2040, os espanhóis poderão ter ultrapassado os japoneses em termos de longevidade. Uma das razões apontadas, e que é muito interessante, até porque não costuma constar muito dos ensaios, é a língua espanhola ser considerada feliz. O facto de procurarmos ter uma vida menos stressante, e o povo espanhol é muito alegre, sai muito à rua e caminha muito, todos os dias, ajuda. Relacionado com isso há o hábito de socializarem muito, que contribui para reduzir o stress.
Gostarmos do que fazemos e termos uma vida social que nos consegue libertar do stress do dia a dia é fundamental. Há estudos que apontam que as pessoas que têm algum tipo de crença religiosa ou espiritualidade têm taxas inferiores de eventos cardiovasculares. Isto – que até poderá mudar ao longo das próximas décadas – tem a ver com stress e bem-estar e o bem-estar está associado a tudo, incluindo a autoestima, os amigos e outros fatores. É importante alimentar os laços familiares e de amizade e que estes estejam ao corrente do que se passa no nosso dia a dia… Outra questão importante é o sono.
Que por vezes descuramos…
Somos o resultado de muita coisa e o sono é uma delas. É importante conseguir dormir seis a oito horas por dia. Quem não consegue fazê-lo tem de perceber o que se passa. Se a pessoa tem, por exemplo, uma roncopatia ou acorda a meio da noite com falta de ar, pode ter uma apneia de sono, a qual pode estar ligada a situações de stress, consumo de álcool e obesidade. Estes fatores podem desencadear situações de hipertensão.
Várias questões importam, portanto.
Sim e além das mais evidentes, também não se deve esquecer que não estamos sozinhos no mundo e, para conseguirmos, ultrapassar obstáculos, nomeadamente uma doença, é bom termos a proximidade de amigos e familiares.
Pelo fator motivacional?
Sim. E é curioso que há diferenças regionais. Já trabalhei em vários hospitais, uns em zonas mais rurais e outros em zonas mais urbanas. Nota-se que nas zonas menos urbanas há muito mais apoio familiar aos pacientes. Em suma, nós somos um todo e o que nos acontece – sendo eventos evitáveis ou não – temos de encarar como um ponto de viragem. Muitas vezes, as pessoas têm um enfarte, ficam com a noção, mais tarde, de que se tornaram mais saudáveis. Não é que estejam, até porque quem teve um enfarte tem mais probabilidade de ter outro evento cardiovascular do que quem nunca teve. No entanto, o que é certo, é que numa altura como essa, é que se muda comportamentos.
Valoriza-se mais a vida?
Claro. Pode ser uma altura para tomar a medicação que tomava desreguladamente, para deixar de fumar, para emagrecer, para fazer exercício e diminuir cargas de trabalho desnecessárias. Muitas vezes, as pessoas ficam até muito tarde a trabalhar sem necessidade.
Acha que a sociedade sobrevaloriza a inegável importância do tempo de trabalho?
Considero que deveríamos repensar muita coisa nesse aspeto, sobretudo a quantidade e o horário de trabalho. Temos, em Portugal, um problema de baixa natalidade e uma das razões para isso é a pouca qualidade de vida das pessoas, além de que a missão que as pessoas têm para os filhos agora, é de dar-lhes todas as condições. Portanto, há aqui uma inversão dos valores. Temos de tentar melhorar este cenário e forçar a que as pessoas tenham horários mais condignos. Aliás, nem sequer fará sentido algumas coisas funcionarem ao sábado e ao domingo como acontece agora. Em outros países, os hipermercados não abrem ao domingo. Aqui, é ao fim de semana que têm mais gente.
O nosso modelo socio laboral poderá estar demasiado virado para a competição?
Não sei. O que sei é que os valores têm de ser diferentes. A ciência melhorou muito, baixámos muito a taxa de mortalidade de muitas doenças e melhorámos, também, a qualidade de sobrevida. Mas para quê que interessa aumentar a sobrevida se não tenho vida social, se não tenho vida cultural?
Essa dimensão cultural também é essencial…
Foi noticiado há dias que os miúdos vão ter de aprender a andar bicicleta. Pois bem, eu acho que deve, também, ser promovida a saúde, a família e os amigos, mas também a cultura. Nos países nórdicos nem tudo é bom, mas há muitos aspetos onde temos muito a aprender. Lá é comum acabar o dia de trabalho às 15h00 ou 16h00. Isso seria excelente a aplicar por cá, para as pessoas se poderem dedicar à família e aos amigos. A sociedade civil também pode fazer algo para promover isso, não é só o Estado, através de legislação. Os laços familiares, sociais e culturais também são, com efeito, importantes na prevenção e no tratamento de problemas de saúde, entre os quais os cardiovasculares.
A questão intergeracional, o contacto com as gerações mais novas a nível pessoal e profissional, é importante para um bom envelhecimento?
Na área médica estamos muito habituados a isso. É muito positivo haver esse contacto. Mais uma vez, isso depende da estrutura social e familiar. A medicina no presente é feita à medida, ou seja, alguém tem determinada doença, há as normas para essa doença, mas, depois, vamos ver o que é melhor para aquele doente em concreto. Na medicina temos isso. Porém, em relação à parte social, não há nada a medir, muitas vezes adotamos o que nos foi transmitido em casa. E é isso que também procuro passar às pessoas com quem trabalho, que são, à sua maneira, também uma família, de que estamos todos no mesmo barco e que, apesar de haver muitas limitações financeiras e de carência de espaços, temos de tentar sempre melhorar. A saúde em Portugal melhorou muito. Mas preocupa-me o lado humano. Qualquer dia, as pessoas estão nos hospitais e ninguém as vai visitar. Ou buscar.
Que papel é que a tecnologia tem?
A tecnologia, em termos de diagnóstico, está num plano muito desenvolvido. Há a possibilidade de evoluir na análise da parte genética e há alguns tipos de patologias cardiovasculares que já podem ser estudadas geneticamente, onde poderá haver algum tipo de prevenção. Mas o que a tecnologia veio, sobretudo, trazer foram avanços no tratamento. Neste momento, temos uma série de tratamentos em pessoas com idades mais avançadas que há uns anos eram impensáveis. Hoje, tratamos pessoas com mais de 80 anos, porque se demonstrou que, com essas novas tecnologias, há menos riscos e, claramente, os custos com esses pacientes são inferiores aos benefícios. Por exemplo, os doentes que têm estenose aórtica severa têm de substituir a válvula aórtica. O preço de uma válvula sem ser por cirurgia pode atingir valores muito elevados. Há estudos que demonstram que vale a pena efetuar o procedimento em pacientes com mais de 80 anos, na medida em que depois são muito menos vezes hospitalizados e conseguem ter uma boa qualidade de vida. Isto é a evolução tecnológica a permitir tratar doentes que antigamente era impensável tratar. No pico da crise económica, no virar da década, quem “segurou” muito as famílias, foram os escalões etários superiores. Os avós receberam outra vez os filhos em casa, pagaram os infantários, começaram a ir buscar e levar os netos à escola. Estes avós, a quem antigamente não se podia efetuar tratamento por a tecnologia não permitir, seja em risco, seja em custo-benefício, no presente, já podem ser tratados. Sem dúvida um excelente contributo da tecnologia.
Analisa-se caso a caso?
Atualmente, há uma abordagem dedicada especificamente ao doente. Quando as coisas são muito complexas, há uma abordagem multidisciplinar. Se há um doente que vai ser submetido a determinado tratamento, mas é um caso que pode envolver diferentes especialidades, fazemos uma abordagem de equipa multidisciplinar para avaliar o doente. A medicina é, no presente, muito centrada no doente. Pretende-se saber as expectativas do doente, qual o apoio familiar que tem, qual a capacidade financeira, se tem ou não tem – e se não tem o que se pode fazer para assegurá-la. Portanto, no presente, é muito interessante constatar que a medicina tem, também, um carácter social, isto é, encaramos o doente – sobretudo os dos escalões etários mais avançados – como um todo e não de forma isolada.