Quando o lazer se torna ocupação | Cultura e Lazer

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Quando o lazer se torna ocupação

20/02/2019 |

Teresa Malta sempre gostou de culinária. Hoje, cozinha no projeto 55+. Teresa Malta sempre gostou de culinária. Hoje, cozinha no projeto 55+.

Testemunhos de quem abraçou atividades que eram lazer como fonte adicional de rendimento na idade da reforma

 

Todos temos hobbies. Seja pintar, correr, dançar, filatelia, escrever. Há um sem-número de opções. Em muitos casos, pensa-se que se gostaria de, mais tarde, fazer apenas isso como atividade principal, mas são poucos os felizardos acabam por consegui-lo.

 

Há porém, os que logram ser exceções. Deixamos aqui três casos de 50+ que deixaram as profissões que tiveram durante anos, e que hoje têm como ocupação principal a paixão das horas vagas de outros tempos. Como disse Mark Twain, “o segredo do sucesso é fazer da sua vocação a sua distração”.

 

Equilíbrio no yoga

Leonor Castilho foi, durante 33 anos, assistente de várias administrações e direções entre associações setoriais e o setor financeiro, mais recentemente.

“Era algo que na altura me preenchia enquanto profissional, mas a verdade é que, paralelamente e na minha vida pessoal, sempre fui tendo outros interesses. No meu caso, desde jovem adulta achava o mundo do yoga fascinante, pelo que comecei a investir mais do meu tempo livre nessa atividade. Tanto que, já nos meus 40 anos, voltei para a universidade tirar o curso de Filosofia. Mais tarde, fiz uma formação em yoga, em Madrid, que me abriu as portas para ser professora, durante muitos anos conciliando com a minha atividade profissional”, conta.

Foi, assim, que abriu, em 2002, o Centro de Iyengar Yoga do Porto. Até 2014 conciliou as aulas com a profissão, altura em que se reformou e abraçou o yoga de corpo inteiro. “Mais do que uma atividade, é uma paixão”, garante, depois de ter afirmado que, “olhando para trás, a mudança não podia ter sido mais positiva”.

“Hoje faço o que realmente gosto”. Leonor Castilho considera que passamos demasiado tempo a queixar-nos e a não darmos valor às pequenas coisas que já conquistamos. O seu projeto futuro é, por isso, “apreciar cada vez mais essas pequenas coisas”.

O conselho que a professora de yoga dá a outras pessoas é que encontrem algo que as preencha. “Porque a partir de certa idade não faz sentido ceder o nosso precioso tempo em algo que não tenha valor e a ver connosco”, afirma.

Uma coisa é certa, as pessoas devem valorizar-se, até porque há muitos aspetos em que mais idade é sinónimo de melhoria. “Muda a nossa perceção sobre a vida e sobre os outros. Habituamo-nos a distinguir rápida e claramente o que é importante, e merece ou exige a nossa atenção, daquilo que não é importante. Ficamos tolerantes connosco e com o próximo”, explica Leonor Castilho.

A nossa fonte refere, aliás, que, em termos profissionais, a incomoda o facto de não ser apreciada a experiência acumulada dos recursos humanos com mais de 50 anos. “[São] uma mais-valia para qualquer organização”, aponta.

Claro que para que possamos ter um bom envelhecimento importa que se mantenha ativa em termos físicos, mentais e sociais. “Como é óbvio”, o seu conselho é que façam yoga. “Porque trabalha tudo: corpo, respiração, mente e espírito. Importante é que encontrem algo que fisicamente os desafie e que intelectualmente os estimule e lhes aporte alegria. Que é tudo o que o yoga me dá”, conta a professora.

De olhos postos no futuro, a entrevistada volta a ancorar-se na sua paixão. “A vantagem do yoga é que somos impelidos a estar em constante aprendizagem. De uma coisa tenho a certeza: nunca estagnarei, pois estou em permanente formação para, desta forma, ajudar cada vez mais e melhor os meus alunos. Até porque na linha de yoga que sigo, Iyengar Yoga, a componente terapêutica é muito grande e por isso uma enorme responsabilidade”, salienta Leonor Castilho.

 

A reportagem de uma vida

Foi jornalista da RTP entre 1975 e 2004 e professor universitário de jornalismo, mas a “cacha” da carreira estava em Vila de Frades, no Alentejo, onde Pedro Luiz de Castro explora, hoje como atividade principal, a Quinta das Ratoeiras, um enoturismo rural. “Foi por alturas do ano 2000 que, ainda jornalista na RTP e com 40 e poucos anos soube que no Alentejo muitas pequenas propriedades estavam a ser adquiridas por estrangeiros, originários sobretudo do norte da Europa. Numa viagem profissional à Vidigueira, apercebi-me que neste concelho alentejano impera o minifúndio, a exemplo do Douro, de onde sou natural”, começa por contar.

O agora gestor apaixonou-se “de imediato” por uma pequena propriedade de seis hectares que tinha um conjunto de particularidades. “Estava completamente abandonada, o que me permitia desenvolver um projeto de acordo com o meu gosto e recursos. Tinha algumas construções em total ruína, o que me dava a possibilidade de proceder rapidamente às reconstruções. E tinha poços e sobretudo nascentes de água, uma riqueza no Alentejo, fundamental para o desenvolvimento de projetos agrícolas”, refere Pedro Luiz de Castro.

O projeto global para a Quinta das Ratoeiras tinha várias fases definidas. “Se aqui me apaixonei pela maneira de fazer vinho de talha, ou seja à moda dos romanos, rapidamente fiz desse facto um chamariz para os que aqui queriam ver e participar nessa aventura única. Claro que era mais conveniente receber as muitas pessoas que queriam descobrir o vinho de talha com um pequeno enoturismo rural, que foi construído mesmo ao lado das ruínas de São Cucufate, as maiores ruínas romanas existentes em Portugal, que datam do século I e poucas pessoas conhecem”, explica.

O ex-jornalista não podia estar mais satisfeito com a mudança de vida. “A mudança, primeiro parcial e agora praticamente total para o Alentejo, foi algo que me deu uma qualidade de vida que definitivamente não se tem nas grandes cidades”, ressalta.

O roteiro futuro da Quinta das Ratoeiras passa pela continuação na aposta no vinho de talha e, por arrastamento, no enoturismo rural. “É na nossa freguesia, Vila de Frades, que existe há mais de 20 anos a Vitifrades, o único certame dedicado ao vinho de talha em Portugal. Por outro lado, o concelho de Vidigueira lidera o movimento para que o vinho de talha seja considerado pela UNESCO património mundial da humanidade. Ou seja estou totalmente ligado a esta região e a esta forma de fazer vinho, pois na Quinta das Ratoeiras já conquistámos duas medalhas de ouro e outras de prata e bronze atribuídas na Vitifrades”, aponta

Pedro Luiz de Castro pretende ainda “ajudar a dar visibilidade a este concelho, que tem tanta coisa ainda pouco conhecida, como o facto de Vasco da Gama ser conde da Vidigueira e de se poder visitar o local que escolheu para ser aqui sepultado”.

Sobre a mudança e a idade, o entrevistado refere que “há a visão distorcida” de que por altura dos 50 anos já pouco ou nada se pode começar. “É um completo disparate”, diz porque é nesta altura da vida “que se tem a sabedoria da meia- idade”.

 

Atividade é o tempero da vida

A atividade é importante em qualquer idade e Teresa Malta, uma cidadã brasileira, mas que já está em Portugal há 28 anos, é um exemplo disso. Quando chegou ao nosso país, foi viver para Coimbra e aí ficou até há pouco tempo. Na cidade do Mondego teve uma carreira profissional no Instituto Pedro Nunes, da Universidade de Coimbra, e, mais tarde, foi gerente de um restaurante. Nos tempos livres, foi sempre apaixonada por cozinhar.

A grande mudança chegou há cerca de dois anos. Após o falecimento da mãe, trocou Coimbra pela zona de Lisboa, para ficar mais próxima de duas filhas, que vivem na Margem Sul.

Prestes a completar 63 anos, hoje integra o projeto 55+, iniciativa em que pessoas com mais de 55 anos fazem atividades que gostam e obtêm um rendimento adicional.

Existem atualmente 2,5 milhões de pessoas inativas com mais de 55 anos em Portugal. Este projeto, que tem Elena Duran como mentora, nasceu para proporcionar a muitas dessas pessoas uma vida ativa através da prestação de serviços em alguns bairros de Lisboa. “Quem oferece, garante uma vida mais saudável, ativa e integrada na comunidade, com uma remuneração extra”, refere a 55+.

A ocupação de Teresa Malta nos primeiros tempos na capital era quase somente ajudar uma das filhas, “que é enfermeira e tem horários difíceis”, a cuidar da neta. “Isso preencheu-me muito”.

A verdade, porém, é que sempre gostou de ter atividade e, como adora cozinhar, a oportunidade surgiria em breve. “Uma amiga da minha filha mais nova que se interessa muito por solidariedade social falou-nos no 55+. Fiquei rendida ao projeto, porque fui fazer um teste de culinária na casa da Elena e quando lidamos com pessoas que nos tratam tão bem, estamos logo mais recetivas a participar. O teste, em que, basicamente, fiz o jantar, correu muito bem”, conta.

A mudança na vida de Teresa Malta “foi muito positiva”. “Por mais que se complete o dia a dia, e eu leio bastante e vou muito ao cinema, parece que falta alguma coisa. É o ‘bichinho’ da atividade. Entrar na 55+ e confortou-me. Porque é uma responsabilidade que se tem, porque nos comprometemos com pessoas que, mais do que pagarem pelo serviço, estão a contar connosco”, explica.

Há desafios diferentes a cada serviço. “Em dezembro, tivemos um almoço para 17 pessoas. Fui fazer as compras e, quando me preparava para começar a cozinhar, fui informada de que duas das pessoas eram vegan. Isso obrigou-me a ser criativa. Na cozinha é preciso improvisar”, nota.

A atividade é algo positivo e os 50+ têm qualidades que quando se é mais jovem não se encontra. “A sensibilidade para verem o mundo e verem o outro de uma forma menos limitada. Creio que a idade abre mais a mente, até porque já temos uma experiência grande e que pode dar muito à sociedade”, defende Teresa Malta.