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Mas uma coisa é mais complicada depreender das entrevistas que lemos: o sorriso reconfortante e o afeto e a paixão com que falou de si, dos seus e do amor que tem pela Medicina e pelo seu ensino. E o brilho nos olhos. O inesquecível brilho dos olhos no alto dos seus 71 anos quando nos contou a sua história.
Não faz sentido mencionar o seu currículo. É demasiado extenso e notável para “caber” numa entrevista. Para “simplificar”, vamos dizer que é uma autoridade no cancro da tiroide, uma afirmação validada com o facto de, em 2016, ter sido eleito pelos seus pares o mais influente patologista do mundo. Manuel Sobrinho Simões, diretor do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP), que fundou há quase 30 anos e um dos centros de excelência mundiais no que toca à investigação do cancro, jubilou-se, tornou-se professor emérito da Universidade do Porto e mudou-se para um pequeno gabinete no Hospital de São João, onde o trabalho, os papéis e as revisões continuam a amontoar-se em cima da secretária.
Um médico que não gosta de ver doentes
Quando lhe perguntamos que impacto teve a sua jubilação, a resposta veio a pensar nos outros. “Olhe, o maior impacto foi nela, que tem mais frio neste gabinete”. “Ela” é Fátima, que há 35 anos trabalha com Sobrinho Simões e que desde logo percebemos ser a grande responsável pela organização do caos que é a agenda e a “vida” do professor. “A culpa é minha, que nunca devia ter aceitado vir para aqui!”, dizia Fátima do outro lado da porta. “Está a anotar isto, olhe que é muito importante”, salientava o patologista entre gargalhadas.
Casado com a pediatra Maria Augusta Areias, com três filhos e seis netos, Sobrinho Simões terminou o liceu Alexandre Herculano com 18 valores e, obviamente, seguiu Medicina. E, aqui, o “obviamente” marca toda a diferença. Quer do lado do pai, quer do lado da mãe, a carreira na área médica corria no sangue da família. “Nunca tive muita alternativa, na verdade. Mas também não me lembro de querer ser outra coisa. O que percebi mais tarde é que não gostava de ver doentes…”.
Podia não gostar de estar em contacto com os doentes, mas havia uma coisa que Sobrinho Simões adorava: questionar. “Em casa dos meus pais e dos meus avós, sempre que alguém dizia alguma coisa, perguntávamos porquê. Queríamos saber. As perguntas da Biologia - e por maior razão, da saúde - são as mais interessantes e ainda não têm solução. A matemática, a física e a química está praticamente resolvida. Mas a Biologia não! Não fazemos hoje ainda ideia de como se criou a vida. Ninguém sabe. As doenças ainda são mais interessantes do que a Biologia pura e dura. Daí o meu fascínio”.
Ouro sobre azul, Sobrinho Simões juntou a curiosidade ávida em saber os porquês ao medo de lidar com os doentes e acabou por seguir patologia, fugir para o diagnóstico e acabar por trabalhar intensamente no diagnóstico de cancro. “Que é a coisa mais objetiva que há!”, contou-nos entre sorrisos. “Tenho uma expectativa muito positiva, mas lido muito mal com a tristeza, com a depressão, pelo que a minha relação com a Medicina acabou por ser sempre através de outros médicos”. Feito o balanço, Sobrinho Simões voltava, sem dúvida, a ser médico. “Aprendi muito e tive a oportunidade de tocar muitos instrumentos, da investigação ao ensino”.
Há vida para além do AVC
Em maio do ano passado, Sobrinho Simões sofreu um acidente vascular cerebral. Perdeu a memória imediata e os nomes individuais, por exemplo, mas nem isso o fez repensar a vida. O que o episódio veio, isso sim, foi dar ainda mais força à mudança do seu próprio “paradigma”. Ao invés do porquê, a grande pergunta passou a ser “para quê”.
E apesar de reformado, a agenda de Sobrinho Simões é um verdadeiro caso de estudo. Pelo menos uma vez por mês vai para fora do país, seja em congressos, palestras ou formações, e mesmo por cá vai fazendo um périplo por várias cidades, marcando presença em diversos eventos. No IPATIMUP, onde é diretor, é responsável pelo treino da área de patologia endócrina. Ou seja, duas vezes por semana revê casos que recebe de todo o mundo aos quais é pedido que dê uma segunda opinião. No dia da entrevista, por exemplo, tinha três casos entre mãos: dois ingleses e um norueguês. A sua equipa de profissionais é composta por uma patologista portuguesas, duas brasileiras, uma turca, uma jordana e uma kuwaitiana. “Para quê, neste caso é fácil responder. Para ajudar, porque tudo isto é de uma utilidade imensa! E porque, na verdade, adoro”.
Agora, porque o faz? Porque o continua a fazer? Porque continua a dedicar-se tanto e a dar tanto de si mesmo já depois da reforma, Sobrinho Simões assume não saber. “Provavelmente é uma toxicodependência. O pavor da reforma era tanto que eu comecei a marcar coisas para depois de me jubilar. O que é estúpido, porque agora estou com um cansaço muito grande!”.
Apesar de tudo, não nos pareceu haver grandes intenções por parte do patologista em abrandar o ritmo, mesmo que a família, conta, fique muito irritada. “Mas também é verdade que ninguém me aturaria se eu fosse para casa”, disse entre sorrisos. “Sou dependente disto. Não faz ideia do que é a minha agenda até ao final da semana. Até tenho vergonha!”
No final, numa conversa que podia ser contada não em entrevista, mas quase em forma de livro, uma coisa ficou bem patente: Sobrinho Simões não pretende desistir de questionar. Afinal, foi o médico que sempre fugiu dos doentes e nunca saiu da idade dos porquês.