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Apesar de continuarmos a olhar para o lado e fingirmos que não existe, a solidão afeta cada vez mais pessoas. Uma realidade que em muitos casos foi dramaticamente agravada pela pandemia.
Impulso Positivo: Temos estado suficientemente atentos ao tema da solidão?
Judite Gonçalves: Não considerando os últimos meses, definitivamente não; a pandemia trouxe alguma atenção ao tema.
Porquê? Embora a solidão afete pessoas de todas as faixas etárias, o foco da investigação está sobretudo nos mais velhos, em parte porque em idades mais avançadas torna-se mais evidente a relação entre a solidão e vários problemas de saúde.
Comparativamente com faixas etárias mais jovens, os mais velhos têm pouca “voz” — suscitam menos interesse por parte de quem escreve notícias ou toma decisões. A pandemia e, em particular, a necessidade de isolamento social que ela nos impôs, impactou-nos a todos, inclusivamente essas faixas etárias mais jovens que normalmente estão “demasiado ocupadas” para repararem na solidão “dos outros”.
Isto é especulação da minha parte, mas penso que a pandemia tornou concreta a ameaça da solidão para todos nós — independentemente da idade— e, de repente, começámos a falar sobre isso.
Impulso Positivo: Tentando esclarecer algumas ideias e até julgamentos errados, viver sozinho não é sinónimo de solidão, certo? E estar rodeado de gente também não resolve os sentimentos de solidão?
Judite Gonçalves: Estar sozinho ou sentir solidão — efetivamente duas coisas diferentes, mas que muitas vezes andam de mão dada.
Viver sozinho ou ter uma pequena rede de X pessoas próximas é algo objetivo; sentir solidão é algo puramente subjetivo, um sentimento.
Assim, é possível que uma pessoa more com imensa gente, por exemplo um idoso num lar, e sinta solidão, ou que um adolescente tenha imensos amigos mas se sinta só. E também é possível que uma pessoa naturalmente introvertida, por exemplo, se sinta perfeitamente bem estando sozinha. Mas, de facto muitas pessoas que moram sozinhas, nomeadamente entre os mais velhos, sentem-se sós.
Por exemplo um estudo de uma amostra de quase quinhentos indivíduos de 85 e mais anos na Suécia e na Finlândia analisou a relação entre várias dimensões de capital social (ter filhos, morar sozinho, a frequência de visitas de familiares e amigos, o estado cognitivo e de saúde, as variáveis sociodemográficas) e a solidão, e determinou que o fator que mais influencia a probabilidade de um indivíduo se sentir só é precisamente morar sozinho (um estudo de Nyqvist e colegas, publicado no Journal of Aging and Health em 2013, Social capital and loneliness among the very old living at home and in institutional settings —a comparative study).
Este é inclusivamente um dos poucos estudos que também considera indivíduos que moram em lares, comparando-os àqueles que moram na comunidade, e mostra que uma maior percentagem dos que moram em lares dizem sentir-se sós (55% contra 45%).
Impulso Positivo: A pandemia expôs de uma forma muito particular a vulnerabilidade da nossa população com mais idade à solidão. Quem são os mais vulneráveis à solidão?
Judite Gonçalves: Primeiro, devo reiterar que a solidão afeta pessoas de todas as idades, e a pandemia trouxe também, por exemplo, alguma atenção à solidão entre os mais jovens, nomeadamente adolescentes.
Efetivamente a solidão entre os mais velhos atraiu grande atenção, porque esse é também o grupo mais vulnerável à covid — logo interditaram-se as visitas aos lares, acabaram-se os jogos de cartas entre reformados nos jardins das cidades, etc.
Além disso, e ao contrário dos adolescentes, por exemplo, a maioria dos idosos não tem competências tecnológicas que lhes permitam compensar (parcialmente) o isolamento físico com alguma comunicação virtual com entes queridos.
Na sequência da questão anterior, os mais vulneráveis são os que moram sozinhos, os que não têm uma rede de contactos próximos (nomeadamente filhos com quem contar, que morem relativamente perto), ou os que não têm contacto regular com a sua rede (inclui-se aqui os que moram em lares e deixaram de receber visitas).
Impulso Positivo: Gostávamos de destacar também a situação dos cuidadores informais. Cuidar de alguém muitas vezes deixa pouco tempo para cuidarmos de nós. É assim, não é?
Judite Gonçalves: Sim. Há quem tenha de conciliar cuidar de um ente querido (por ex. pai ou mãe) com cuidar da casa e da sua própria família nuclear (marido e filhos), com um emprego a tempo inteiro. Não sobra tempo para si próprio, quanto mais para socializar.
Estas pessoas estão extremamente vulneráveis à solidão, ao stresse, à depressão, para não falar de consequências ao nível da saúde física que daí advêm.
Este é ainda um tema desigual, que afeta desproporcionalmente famílias de estatuto socioeconómico mais baixo, sem margem financeira para optar por um emprego a tempo parcial, sem meios para institucionalizar o cuidando ou para contratar ajuda formal, ou ainda sem conhecimento para procurar apoios.
Impulso Positivo: Em que medida a criação do Estatuto do Cuidador Informal, em Portugal, pode ajudar a cuidar melhor de quem se dedica a cuidar dos outros?
Judite Gonçalves: Entre outras ajudas, o Estatuto contempla por exemplo o descanso do cuidador, desenhado para que quem cuida possa “tirar férias” dessa tarefa ocasionalmente, sendo o cuidando institucionalizado por um curto período (ou ficando em casa a receber apoio domiciliário). Resta saber se existem vagas nas instituições para acolher temporariamente estas pessoas, para que os seus cuidadores possam efetivamente usufruir desse descanso.
Outras medidas previstas incluem:
- apoio psicossocial,
- grupos de autoajuda,
- o subsídio de apoio para famílias com baixos rendimentos.
Por enquanto, só pode beneficiar das medidas de apoio quem resida num dos 30 concelhos a implementar os projetos-piloto, que aplicam de forma experimental as medidas de apoio ao cuidador informal e que apenas se iniciaram no início de junho 2020. Vamos ter de esperar para ver os resultados.
Espero que esses projetos contemplem planos de avaliação adequados que nos permitam aferir quais as medidas que contribuem ou não para a melhoria da qualidade de vida de cuidadores e cuidados.
Guia prático da segurança social aqui.
Impulso Positivo: Ainda sobre a pandemia e porque de facto deixou a descoberto várias fragilidades da nossa sociedade, temos de lhe perguntar: apesar dos progressos, a oferta de estruturas residenciais para a população de maior idade ainda é escassa? E, sobretudo, são escassos os meios humanos?
Judite Gonçalves: A minha impressão é de que sim: a oferta é escassa.
Com base na Carta Social de 2018, o número e a capacidade de estruturas residenciais registaram incrementos marginais entre 2015 e 2018, e a taxa de utilização é próxima de 100% (exibindo, claro, variações geográficas).
Além disso, menos de 40% dos residentes encontram-se em lares na sua própria freguesia ou concelho de residência — quase 30% encontram-se em lares noutro concelho do mesmo distrito, e cerca de 30% noutro distrito.
Estes números sugerem que algumas pessoas têm de ir para lares longe da sua residência, possivelmente por falta de vaga em lares mais próximos, o que pode implicar estar longe da família e não ter qualquer tipo de ligação com os restantes residentes (com implicações, mais uma vez, para a solidão).
Infelizmente, muita informação que seria útil, não existe ou não está disponível. Sabemos os números de respostas à capacidade, e à taxa de ocupação, mas não sabemos os números de pessoas que estão à espera de lugar (muito menos aqueles que necessitariam de apoio mas que não o solicitam por diversos motivos, e estão “esquecidos”).
Também não temos, que eu saiba, informação sobre os meios humanos — números de funcionários, qualificações— e não sabemos absolutamente nada sobre a qualidade dos serviços prestados quer nas estruturas residenciais, quer nas restantes estruturas de apoio aos mais velhos (nomeadamente centros de dia e apoio domiciliário).
Impulso Positivo: E enquanto sociedade, como podemos ajudar a combater o isolamento social e a solidão?
Judite Gonçalves: Podemos desde já falar sobre isso, porque se estes forem problemas reconhecidos por todos nós, então cada um poderá agir dentro da sua família e da sua comunidade, estando atento às pessoas vulneráveis à sua volta (e a si próprio), reconhecendo sinais de isolamento e solidão, prestando apoio ou sinalizando situações às instituições locais.
É que o problema também reside na ignorância e até no preconceito acerca destas questões.
Também podemos promover as mais variadas atividades para juntar pessoas com interesses comuns ou, nos tempos que correm, procurar dotar os indivíduos mais velhos de competências tecnológicas que lhes permitam comunicar com os familiares (p. ex. nos lares e centros de dia, ter funcionários a ajudar os utentes a fazer videochamadas com os familiares).
Ter animais de estimação também pode ajudar.
Podemos ainda exigir respostas sociais e intervenções para combater o isolamento social e a solidão, implementadas com transparência e dotadas de planos de monitorização e avaliação, para que possamos perceber o que funciona e o que não funciona, em que situações e porquê, e refinar a nossa atuação, pois ainda sabemos pouco sobre as formas mais eficazes de atacar este problema.