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Impulso Positivo: Permita-nos partir do título do seu último livro ‘Um tempo sem idades’ para iniciarmos esta entrevista. O que é ‘um tempo sem idades’?
Maria João Valente Rosa: É um conceito para uma sociedade mais inclusiva, mais coesa e mais confortável para todos os que nela habitam.
Uma sociedade mais inclusiva, em que o interesse e o reconhecimento social das pessoas não seja função de um atributo que lhes é completamente alheio, que é a idade cronológica, externo às pessoas, tal como o é o sexo ou o país de nascimento.
Uma sociedade mais coesa em termos geracionais, em que as pessoas nas várias idades ou várias gerações (mais velhos e mais novos) não estejam em fileiras distintas, como acontece nas sociedades atuais, onde os direitos de uns correspondem aos deveres dos outros.
E também, uma sociedade mais confortável, em que a vida seja vivida de forma completa, como um contínuo, e não com tempos separados para o estudo, o trabalho ou lazer.
Para alcançar tais objetivos, é necessário mudar, proceder a um redesenho social das nossas vidas em sociedade e da forma como percecionamos ou valorizamos o outro, o que por enquanto continua muito condicionado pela idade cronológica que esse outro tem.
Impulso Positivo: Precisamos, então de superar o rótulo da idade para que isso aconteça?
Maria João Valente Rosa: Claro que sim!
A idade cronológica é um rótulo que tem por base o ano de nascimento e que diz muito pouco sobre a pessoa e sobre a sociedade. O problema não está na idade cronológica, que é um dado objetivo, mas sim no significado social que surge colado a esse rótulo.
Utilizamos a idade de forma acrítica para classificarmos socialmente o outro ou mesmo para definir o valor das pessoas que compõem uma sociedade, o que não faz qualquer sentido.
Qual a razão que justifica que um funcionário público quando faz 70 anos tenha que se aposentar? O que justifica que essa pessoa adormeça ativa e acorde reformada só por ter completado uma determinada idade?
Sabemos que o processo de envelhecimento é contínuo. Por outro lado, em termos individuais, sabemos que cada pessoa é diferente de uma outra e que combina várias idades:
- a idade cronológica, definida com base no ano de nascimento;
- a idade biológica (determinada a partir das condições das células, dos órgãos ou dos tecidos);
- a idade psicológica (que tem a ver com a forma como cada pessoa se sente em relação aos outros);etc..
Por isso, qual a razão de se considerar que a partir de certa idade, independentemente da sua vontade, todas as pessoas se têm que reformar?
Ainda, numa sociedade do conhecimento como a que vivemos, e sabendo que não existe relação entre conhecimento e a idade, que sentido faz considerar que alguém por ter uma determinada idade é menos interessante do ponto de vista do seu contributo para o coletivo, que um outro mais novo?
Em termos estatísticos, a idade cronológica é também na minha perspetiva, muito pouco interessante enquanto critério único para avaliar se uma população está mais envelhecida que outra.
Dizer que a população de Portugal está hoje muito mais envelhecida que em 1960 pois tem um maior número de pessoas com 65 ou mais anos é pouco útil e leva-nos a conclusões enganadoras, pois estamos a comparar o que não é comparável.
Sabemos que alguém hoje com 65 anos, em termos das suas capacidades e características nada tem a ver com alguém da mesma idade em meados do século passado. Por exemplo, considerando as expectativas de vida, os 65 anos em 1960 equivalem a 72 anos de hoje.
Por fim, o abuso do uso da idade cronológica na nossa sociedade dá, ainda, um sinal muito errado sobre o modo como as pessoas se poderiam posicionar perante a vida.
Ela indica o número de anos que uma pessoa já viveu e não o número de anos que ainda tem pela frente. Hoje alguém com 40 anos em Portugal tem uma esperança média de vida de mais 42.
Sabendo isso, questiono se faz mais sentido pensar nessa pessoa como alguém que já viveu 40 anos ou dos 42 anos que ainda tem para viver.
Em suma, o rótulo da idade cronológica esvazia toda a riqueza do que a pessoa é e do que ainda pode ser.
E também esvazia os progressos de sociedade e dos tempos. É, portanto, um critério que vale a pena ser questionado e ser revisto.
Impulso Positivo: Numa conferência muito recente, promovida pela Culturgest, a professora dizia algo que dificilmente deixou alguém indiferente. Falava do modelo da organização do ciclo de vida e dizia que «sentimos que temos não mais tempo para viver, mas que temos mais tempo para sermos velhos». Quer comentar esta reflexão.
Maria João Valente Rosa: Tal como as nossas vidas estão desenhadas, o trabalho ou ter uma atividade reconhecida socialmente é uma importante fonte de realização pessoal. Preparamo-nos, enquanto somos jovens para o trabalho e trabalhamos durante grande parte das nossas vidas.
De um momento para outro, com a Reforma, surge a pergunta: e agora?
A resposta imediata é: vou fazer tudo aquilo que ao longo da vida não tive tempo para fazer. Mas depois de tudo isso, o que se segue?
Frequentemente um grande vazio e um sentimento de inutilidade por os outros já esperarem pouco de nós. E com isso o sentido da vida é perdido para muitos, que optam por se isolar ou, por pura e simplesmente, por se entreter.
Estamos perante bónus de vida assinaláveis que cada pessoa pode esperar viver. Hoje alguém com 65 anos em Portugal pode esperar viver cerca de mais 6 anos do que em 1950, com essa mesma idade. O que equivale, aos 65 anos, a uma média de ganho nesse período de 1 mês por ano ou de 2 horas por dia.
Mas para onde foi esse acréscimo de tempo?
A maioria desse tempo, foi para um período chamado a reforma. O tempo de reforma dilatou-se muito. E com a reforma, vem um tempo em que os outros deixam de esperar muito do nosso contributo para a sociedade. Como se a pessoa já tivesse dado tudo no passado.
Em suma ganhamos efetivamente tempo médio de vida, mas isso por si só não chega. É preciso mais. Muito mais. Dar conteúdo e sentido aos anos que temos pela frente!
Impulso Positivo: E, na sua opinião, então o que é preciso?
Maria João Valente Rosa: Em primeiro lugar, é importante percebermos que não se começa a planear vidas quando se é mais velho.
Desde cedo temos que pensar que estamos a envelhecer, processo que se inicia muito antes dos 65 anos de idade, e que vamos viver muitos anos, em princípio.
É preciso também, realizarmos que não existem, como no passado, “trabalhos para a vida”, como se costumava dizer. Também é preciso percebermos que temos que ir acompanhando essas decisões ou estratégias com o evoluir do conhecimento, através de formação.
Por isso, em cada fase da nossa vida adulta, independentemente da idade que tivermos, temos que pensar no que iremos fazer no futuro enquanto forma de preenchermos a vida que temos pela frente e de nos realizarmos minimamente.
É preciso planear conteúdos para as vidas longas e definir estratégias para o alcançar os objetivos.
É claro que aqui o apoio dos poderes públicos e das organizações são essenciais para sermos melhor sucedidos, quer pessoalmente, quer enquanto sociedade.
Impulso Positivo: Mas isso obriga a uma mudança grande e a uma sociedade muito diferente do passado… que na realidade já somos…
Maria João Valente Rosa: Sim, claro. Estamos perante uma sociedade muito diferente do passado. Não devemos perpetuar os modelos do passado.
Imagine que aos 20 anos tenho um trabalho que até gosto e que aos 40 anos de idade, continuo a fazer a mesma coisa. Talvez o ânimo já não seja o mesmo, o que é natural pois nós, enquanto pessoas, vamos mudando de interesses, de características, de capacidades intelectuais e físicas, etc.
Por outro lado as áreas de trabalho não são estáveis e hoje o que pode ser uma área de negócio promissora, amanhã poderá não o ser.
Por isso, é preciso prepararmo-nos para essas mudanças em curso, ganhando resiliência com a formação, e capacidade de resposta com um planeamento do que poderá ser cada um poderá fazer com o tempo que tem ainda para viver.
Claro que para formação e para planear novos projetos de vida é necessário tempo, em especial nas idades centrais.
Esse tempo que pode ser retirado ao tempo de trabalho, não significa necessariamente que passemos a ser menos produtivos.
Apenas trabalhamos menos horas, o trabalho deixa de ser mais intenso nas idades centrais, e prolonga-se por mais tempo nas nossas vidas.
Proponho uma nova lógica de vida, contrapondo ao que neste momento temos que é uma vida tripartida e segmentada por critérios de idade, com uma idade para formação, uma idade para o trabalho e, por fim, uma idade para descansar.
Impulso Positivo: Durante o pico da situação pandémica assistimos a situações tão contraditórias como, por um lado, o Serviço Nacional de Saúde a solicitar aos profissionais de saúde já reformados ajuda para enfrentar a Covid-19. E por outro, por variadíssimas vezes, sentimos que pairava na sociedade um tom algo discriminatório quando se falava dos mais velhos e da pandemia.
Afinal contamos ou não contamos todos para esta sociedade em que vivemos, independente da nossa idade? O que perde uma sociedade que exclui os mais velhos?
Maria João Valente Rosa: Deveríamos, sim, contar com todos para esta sociedade.
Mas, a realidade é outra. A sociedade conta mais com uns do que com outros, independentemente do seu valor ou interesse, mas devido à idade que têm.
Um país que exclui uma parte da sua população está a perder em capital humano, o bem mais precioso para que a sociedade tenha vida, o que ainda se torna mais crítico quando se percebe que muitas das pessoas excluídas do mercado de trabalho por decreto etário gostariam de continuar implicados em trabalhos remunerados.
O que o país ganha por ter tal postura é também muito, mas em sinal negativo. Potencia, por exemplo, o desenraizamento e a vulnerabilidade social e financeira dos grupos mais velhos que exclui.
De acordo com os últimos dados a taxa de risco de pobreza da população com 65 anos ou mais anos sem transferências sociais, ou seja sem reforma, seria próxima dos 90%. O que quer dizer, que sem o pagamento das reformas as pessoas seriam pobres. No entanto com as reformas o valor desce para os 17%.
A saúde também não fica imune. Aliás, costumo perguntar se será que a reforma faz bem a saúde.
Impulso Positivo: Que conselhos daria para quem ainda tem tempo de preparar esta fase, adicionando efetivamente vida aos anos que está a conquistar?
Maria João Valente Rosa: Sabendo que nada é adquirido, o grande conselho que dou é a formação, para acompanhar esta onda gigante de mudança e se adquirir resiliência.
Continuar a estudar, sermos curiosos. A escolaridade e a formação não só nos ajudam a ter melhores condições de vida e a viver mais tempo como parte do que aprendemos nos bancos das escolas já está obsoleto ou nem era matéria desconhecida.
Quando falo de formação, não me refiro a formação superior ou avançada. Mas à formação básica, como o é, por exemplo, a aquisição de competências digitais mínimas. Voltar aos bancos da escola é importante, tal como o é saber que não teremos que estar condenados a fazer toda a vida o que fizemos quando se entrou na vida ativa.
Mais uma vez, os poderes públicos são aqui essenciais na promoção, incentivo e garantia de condições de redesenho das nossas vidas longas, tal como as organizações através do estímulo e incentivos a tais iniciativas de âmbito mais pessoal ou coletivo.
Em suma: o meu conselho é que todos, sem exceção, se impliquem neste processo de mudança, por ser um assunto do foro, não só individual, mas do bem-estar coletivo.
Na medida em que para alguns tudo o que aqui foi dito pode parecer utopia, refiro uma frase atribuída a Oscar Wilde com a qual termina o meu ensaio “Um tempo sem idades: ensaio sobre o envelhecimento da população”, editado pela Tinta-da-china: «o progresso é a concretização das utopias».
Nota: O livro “Um tempo sem idades” da autora Maria João Valente Rosa foi editado pela Tinta da China em Maroço de 2020.
Caso tenha interesse em comprar o livro, pode fazê-lo através deste link.